segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

UTOPIA

 




"Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei"

Manuel Bandeira, poeta (1886-1968).

Sonhei com Utopia, uma adorável cidade no reino de Pasárgada. "Lá a existência é uma aventura, de tal modo inconsequente", que na política a situação faz oposição e a oposição vota a favor da situação. Se o projeto for bom para a população, aprovam e, se for ruim, reprovam. Simples! Ocasionalmente aparecem alguns dissidentes magoados. Nesses casos, no final da votação, o presidente da casa cita (por determinação do regimento), Manuel Bandeira: "A tiririca sitia os canteiros chatos".

O legislativo "tem um processo seguro" de barrar nomeações. Certa ocasião, para o cargo de diretor do "Distrito Imaginativo", foi indicado um candidato que residia 30 léguas distante da cidade. Na sabatina do Parlamento Municipal (igual o Senado para ministro do STF), o indicado não soube explicar onde ficavam os principais bairros da regional para a qual fora nomeado. Nomeação rejeitada por 15 x 1. A fundamentação nos autos pelo relator foi incontestável: como pode ser diretor do Distrito Imaginativo se não conhece a Fantasia, o Sonho e a Ilusão?

Lá também "tem um processo seguro" (diferente do primeiro), de impedir a nomeações de parentes, cônjuges, agregados, noras, genros, sogras e, principalmente, os contraparentes e namoradas que os vereadores nunca tiveram. O artigo 1º do regimento do parlamento é claro: "Proibido o lirismo do nepotismo". O artigo 2º corrobora o 1º: "Nesta casa, a 'Lei de Gerson' não tem nenhuma prerrogativa".

No sonho (onde tudo é possível), fui eleito alcaide de Utopia. Fizemos uma transição e reformas como um "Cowboy fora da Lei". Havia muitos amigos do rei querendo manter as benesses conquistadas (lá tem muito peso ser amigo do rei).Tanto que, numa antiga gestão, só no primeiro escalão eram oito advogados e algum cargo de moleza (estritamente técnico!), todos amigos do rei. Para qualquer indagação, os doutores tinham sempre as mesmas desculpas: "Data venia! A priori, existe necessidade urgente dos processos a processar, mas veja bem, somente se não houver demandas a demandar! Mas tudo irá depender do parecer do Amicus curiae".

E, quanto ao cargo de moleza (estritamente técnico e amigo do rei!), como uma andorinha vivia dizendo:

-"Passei o dia à toa, à toa".

Em Utopia era corrente os edis irem aos eventos para tirar fotos com o alcaide. Bastava ele estar numa cerimônia ou fiscalizando uma obra para vários deles aparecerem com o celular em punho para as selfies. Para resolver o excesso de uso e abuso do lucro político do serviço alheio, foi sugerido "ao pé da orelha" para o presidente de um bloco carnavalesco, conhecido na cidade por sua ironia e crítica política, fazer um concurso pelas redes sociais: "O Papagaio de Pirata da Semana". Só teve uma edição e não houve mais nenhuma selfie com o alcaide.

Olha que ser prefeito não é fácil, até no sonho eu já estava cansado. Eram eventos de formaturas, premiações, inaugurações, reinaugurações, re-re-reinauguração, corridas, caminhadas, intermináveis e tediosas reuniões e a carreta furacão. Ufaaaaa! Prefeito precisa descansar! Eu estava em Utopia no reino de Pasárgada, então aproveitei... "e quando estiver cansado/ deito na beira do rio/ Mando chamar a mãe-d'água/ pra me contar histórias/que no tempo de eu menino"... O ribeirão ainda ostentava orgulhoso a sua mata ciliar e tinha suas nascentes preservadas.

Num repente o meu sonho mudou, vi um alcaide (que não era eu!) na beira do ribeirão e, pasmem, estava "dançando com o ex-prefeito municipal". Juntos comemoravam as suas marcas pessoais no combate às enchentes. Pensei: é um momento "tão Brasil..."e "ninguém se lembra de política". Achei estranho, pois, lá em Utopia, impera a mentalidade de um "novo poder" e "um processo seguro" de envolvimento participativo da sociedade nos principais projetos da municipalidade. Todas as iniciativas da administração são validadas pela comunidade! Lá não tem problemas de comunicação, crises e desgastes políticos. E "não trucidariam o rio!"

Acordei bem confuso! Não conseguia lembrar o que era sonho ou realidade. Naquele momento realmente eu desejei ir-me embora pra Pasárgada! Pedi desculpas ao poeta e ouvi um sussurro no meu ouvido:

- "A única coisa a fazer é tocar um tango argentino"

Pedi desculpas novamente, mas tive que desobedecer. Achei que o melhor para a ocasião era cantar Raul Seixas:

"Mamãe, não quero ser Prefeito.

Pode ser que eu seja eleito"

Raul Seixas (1945-1989) – Cowboy Fora da Lei

Fabio Chrispim Marin

Publicitário, presidente dos Demônios Acadêmicos da Benjamin - desde sempre. Ocioso e sem o carnaval.

Publicado no Jornal de Itatiba de 08/01/2022. Coluna Opiniões.

Esta é uma obra de ficção, baseada na obra do poeta Manuel Bandeira, apesar de qualquer semelhança com nomes, apelidos, profissões, políticos, alcaides, edis, pessoas, fatos, poetas, poemas, acontecimentos ou fatos da vida real terá sido mera coincidência.

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