quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Um Causo da Velha Política


No Grande Império há uma prática comum de troca de favores entre o Executivo e o Legislativo para aprovação de projetos e apoio político recíproco. A prática é conhecida como a Velha Política ou o "toma lá dá cá".  A principal referência desse sistema é o Centrão, agrupamento de legendas presentes no Parlamento beneficiado com os orçamentos secretos e outras emendas parlamentares.

 Em um reino nem tão distante, houve uma época em que alguns senadores estavam bastante inquietos e dificultavam algumas iniciativas da primeira dinastia Tucana. Então, o soberano, inspirado na iniciativa eficaz do Império, criou também uma "moeda de troca": o Conselho de Assuntos Inexpressivos. Acalmou os rebeldes do Legislativo e governou por oito anos. Não conseguiu acalmar a sábia oposição e a opinião pública que, legitimamente, não deixaram os Tucanos fazerem o seu sucessor. Um sucessor que o Alto Tucanato também não queria.

Subiu ao trono o Jovem Rei I, que sentiu a necessidade de aumentar as benesses para o Centrão. Criou os Sete Vice-Reinos. Distribuiu quase todos os cargos entre os senadores da sua base e, assim, governou por quatro anos até ser deposto, legitimamente por plebiscito. Agradara os senadores do seu grupo, mas não conseguira convencer a totalidade dos seus súditos.

A dinastia Tucana retorna ao poder com o Rei Tommaso IX. O novo soberano, conhecido pela sua polidez e diplomacia, fez algumas alterações pontuais no relacionamento com os senadores. Com a medida, conseguiu a adesão de dois grandes partidos da oposição, ambos atraídos pela esperança de bons apanágios.

 O relacionamento dos últimos três reinados com o senado foi o tema da tese de Pós-Doc. "É assim porque foi sempre assim", de um renomado Professor Doutor Historiador. Depois de muito pesquisar nas atas e regimentos da concepção do Conselho de Assuntos Inexpressivos, ele notou que no decreto da sua criação, o artigo I enunciava como soft skills mínimo e obrigatório para o cargo de conselheiro da pasta era pertencer a uma "linhagem política". Descoberta que esclareceu definitivamente a legitimidade pelo qual a primeira Dinastia Tucana e o Rei Jovem I, só nomearem as esposas e irmãos dos confrades políticos.

O Rei Tommaso IX revogou a condição da "linhagem política". Instituiu que a condição sine quo non para ocupar o cargo de Conselheiro de Assuntos Inexpressivos era ser senador e membro da "Fraternidade de Apoio Real". Assim, o objetivo de agradar os senadores seria mantido, mas sem a hereditariedade familiar.

Quanto aos Sete Vice-Reinados, o enunciado do Artigo I da lei que regulamentou a sua criação, diz que os vice-reis não precisavam despachar nas suas regiões, poderiam ser estrangeiros e sem nenhum conhecimento do seu vice-reinado. Já o Artigo II deixa clara a preocupação do Rei com possíveis desvios de funções: nada de muitos afazeres a fazer no seu território. Os dois artigos foram mantidos Ipsis litteris por Tommaso IX.

Na sua tese, aprovada com Distinção e Louvor, o Professor Doutor Historiador faz um resumo de todas essas informações e, também, como encontrou a citação definitiva que esclareceu o seu ponto de vista sobre o poder do centrão no reino. Como ele era neto de um surdo e com o avô aprendeu a se utilizar da técnica da surdez seletiva, fazia plantões diuturnos na Casa de Leis, onde todos tinham a certeza que ele não escutava nada. Mas escutava tudo! Certa ocasião, enquanto lia os jornais na sala de café, presenciou um encontro de um grupo de senadores neófitos com o presidente do Senado. Eles propunham extinguir a Secretaria de Assuntos Inexpressivos e os Sete Vice-Reinados. Com estudos e planilhas, argumentavam que o reino economizaria mais de bilhão de Coroas Reais por ano, recursos que poderiam ser usados para a educação e a saúde.

Para esclarecer o objetivo da tese, o Doutor Professor Historiador, transcreveu minuciosamente o que ocorreu e ouviu na reunião:

"O decano presidente do Senado se enfureceu, cerrou os punhos e socou com raiva a mesa, derrubando as xícaras e os copos no chão". Assustados, os jovens senadores acuaram. Ele fez um sinal com as mãos pedindo um tempo para retomar o controle emocional. Fez uma longa pausa. Tirou seu Taurus 38 do coldre - é membro do clube de tiro ao Álvaro, colocou em cima da mesa, sem tirar os olhos dos jovens políticos. Alisou com o mata-piolho e o fura-bolo os seus espessos bigodes, parecia ler as planilhas, mas como um bom decano, analisava as consequências políticas do projeto. Mais calmo e com a sapiência dos seus dez mandatos, colocou um ponto final na conversa:

— Vejam bem. O sistema É assim porque foi sempre assim! Vocês são novos aqui, então, prestem bem atenção no que considero ser o mais importante: Deus nos livre ser oposição! Querem que nossos ancestrais revirem no túmulo? Caiam já fora daqui!

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, cargos, reis, decretos, acontecimentos ou fatos da vida real terá sido mera coincidência

Publicado no Jornal de Itatiba em 24/09/2022

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

UTOPIA

 




"Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei"

Manuel Bandeira, poeta (1886-1968).

Sonhei com Utopia, uma adorável cidade no reino de Pasárgada. "Lá a existência é uma aventura, de tal modo inconsequente", que na política a situação faz oposição e a oposição vota a favor da situação. Se o projeto for bom para a população, aprovam e, se for ruim, reprovam. Simples! Ocasionalmente aparecem alguns dissidentes magoados. Nesses casos, no final da votação, o presidente da casa cita (por determinação do regimento), Manuel Bandeira: "A tiririca sitia os canteiros chatos".

O legislativo "tem um processo seguro" de barrar nomeações. Certa ocasião, para o cargo de diretor do "Distrito Imaginativo", foi indicado um candidato que residia 30 léguas distante da cidade. Na sabatina do Parlamento Municipal (igual o Senado para ministro do STF), o indicado não soube explicar onde ficavam os principais bairros da regional para a qual fora nomeado. Nomeação rejeitada por 15 x 1. A fundamentação nos autos pelo relator foi incontestável: como pode ser diretor do Distrito Imaginativo se não conhece a Fantasia, o Sonho e a Ilusão?

Lá também "tem um processo seguro" (diferente do primeiro), de impedir a nomeações de parentes, cônjuges, agregados, noras, genros, sogras e, principalmente, os contraparentes e namoradas que os vereadores nunca tiveram. O artigo 1º do regimento do parlamento é claro: "Proibido o lirismo do nepotismo". O artigo 2º corrobora o 1º: "Nesta casa, a 'Lei de Gerson' não tem nenhuma prerrogativa".

No sonho (onde tudo é possível), fui eleito alcaide de Utopia. Fizemos uma transição e reformas como um "Cowboy fora da Lei". Havia muitos amigos do rei querendo manter as benesses conquistadas (lá tem muito peso ser amigo do rei).Tanto que, numa antiga gestão, só no primeiro escalão eram oito advogados e algum cargo de moleza (estritamente técnico!), todos amigos do rei. Para qualquer indagação, os doutores tinham sempre as mesmas desculpas: "Data venia! A priori, existe necessidade urgente dos processos a processar, mas veja bem, somente se não houver demandas a demandar! Mas tudo irá depender do parecer do Amicus curiae".

E, quanto ao cargo de moleza (estritamente técnico e amigo do rei!), como uma andorinha vivia dizendo:

-"Passei o dia à toa, à toa".

Em Utopia era corrente os edis irem aos eventos para tirar fotos com o alcaide. Bastava ele estar numa cerimônia ou fiscalizando uma obra para vários deles aparecerem com o celular em punho para as selfies. Para resolver o excesso de uso e abuso do lucro político do serviço alheio, foi sugerido "ao pé da orelha" para o presidente de um bloco carnavalesco, conhecido na cidade por sua ironia e crítica política, fazer um concurso pelas redes sociais: "O Papagaio de Pirata da Semana". Só teve uma edição e não houve mais nenhuma selfie com o alcaide.

Olha que ser prefeito não é fácil, até no sonho eu já estava cansado. Eram eventos de formaturas, premiações, inaugurações, reinaugurações, re-re-reinauguração, corridas, caminhadas, intermináveis e tediosas reuniões e a carreta furacão. Ufaaaaa! Prefeito precisa descansar! Eu estava em Utopia no reino de Pasárgada, então aproveitei... "e quando estiver cansado/ deito na beira do rio/ Mando chamar a mãe-d'água/ pra me contar histórias/que no tempo de eu menino"... O ribeirão ainda ostentava orgulhoso a sua mata ciliar e tinha suas nascentes preservadas.

Num repente o meu sonho mudou, vi um alcaide (que não era eu!) na beira do ribeirão e, pasmem, estava "dançando com o ex-prefeito municipal". Juntos comemoravam as suas marcas pessoais no combate às enchentes. Pensei: é um momento "tão Brasil..."e "ninguém se lembra de política". Achei estranho, pois, lá em Utopia, impera a mentalidade de um "novo poder" e "um processo seguro" de envolvimento participativo da sociedade nos principais projetos da municipalidade. Todas as iniciativas da administração são validadas pela comunidade! Lá não tem problemas de comunicação, crises e desgastes políticos. E "não trucidariam o rio!"

Acordei bem confuso! Não conseguia lembrar o que era sonho ou realidade. Naquele momento realmente eu desejei ir-me embora pra Pasárgada! Pedi desculpas ao poeta e ouvi um sussurro no meu ouvido:

- "A única coisa a fazer é tocar um tango argentino"

Pedi desculpas novamente, mas tive que desobedecer. Achei que o melhor para a ocasião era cantar Raul Seixas:

"Mamãe, não quero ser Prefeito.

Pode ser que eu seja eleito"

Raul Seixas (1945-1989) – Cowboy Fora da Lei

Fabio Chrispim Marin

Publicitário, presidente dos Demônios Acadêmicos da Benjamin - desde sempre. Ocioso e sem o carnaval.

Publicado no Jornal de Itatiba de 08/01/2022. Coluna Opiniões.

Esta é uma obra de ficção, baseada na obra do poeta Manuel Bandeira, apesar de qualquer semelhança com nomes, apelidos, profissões, políticos, alcaides, edis, pessoas, fatos, poetas, poemas, acontecimentos ou fatos da vida real terá sido mera coincidência.

.